Vinaora Nivo Slider 3.xVinaora Nivo Slider 3.xVinaora Nivo Slider 3.x
Vista Frontal do Edificio Principal do Tribunal Supremo
Tribunal Supremo

Juízes capacitados em matérias de Prisão Preventiva e Habeas Corpus

 

4 F PETJ

VINTE Juízes do Tribunal Judicial da Província de Tete foram capacitados, no dia 13 de Junho de 2018, na Cidade de Tete, em matéria do instituto de Medidas de Coacção em Processo Penal e Habeas Corpus. A acção foi ministrada pelos Venerandos António Paulo Namburete e Luís António Mondlane, Juízes Conselheiros do Tribunal Supremo, à margem do workshop de divulgação e implementação do Plano Estratégico dos Tribunais Judiciais 2016-2020.

Refira-se que a profissionalização dos operadores da justiça constitui uma das acções prioritárias definidas no Plano Estratégico dos Tribunais Judiciais 2016-2020, com vista a elevar a eficiência e eficácia da prestação jurisdicional.

Dada a relevância da abordagem temática, apresenta-se, de seguida, na íntegra, os respectivos temas:

Tema 1: PRISÃO PREVENTIVA

  • Por António Paulo Namburete, Juiz Conselheiro do Tribunal Supremo

    4.1Refira-se que a profissionalização dos operadores da justiça constitui uma das acções prioritárias definidas no Plano Estratégico dos Tribunais Judiciais 2016-2020, com vista a elevar a eficiência e eficácia da prestação jurisdicional.
    I. Medidas de coacção em Processo Penal
    1. Breve resenha histórica das medidas de coacção[1]
    Antes do actual Código de Processo Penal que é de 1929, a matéria era tratada nas Ordenações Afonsinas em várias leis que visavam regular as medidas de coacção na pendência de processo, nomeadamente a prisão preventiva. Aí se proclamava que ninguém seria preso sem culpa formada ou por acto que não merecesse tal pena ou por juiz incompetente. Em caso de violação destas regras, o cidadão podia apresentar reclamações ao rei que as atendia, sendo que a lei de 21 de Janeiro de 1495 regulou a aplicação da prisão preventiva.

Estas disposições passaram para as Ordenações Manuelinas e mais tarde para as Filipinas.

A regra básica era de que ninguém podia ser preso sem culpa formada e sem ordem do magistrado. Estabeleciam-se duas excepções: o flagrante delito e quando o crime provado merecesse pena de morte natural ou civil. Nestes casos, porém, devia formar-se a culpa dentro de oito dias; se assim não fizesse, o preso devia ser imediatamente solto.

Ressalvadas as duas excepções referidas, a lei só permitia a prisão preventiva quando o arguido fosse pronunciado por algum crime. A prisão mantinha-se até ao julgamento, quando o crime fosse das mais graves e se verificassem certos requisitos que indiciassem fortemente  a responsabilidade do arguido.

Quando estes requisitos se não verificassem, o arguido ficava ainda sujeito a prisão preventiva, a não ser que pudesse usar dos meios que a lei punha ao seu alcance para substituir: o seguro, a homenagem e a fiança[2].

A evolução posterior ditou a consagração do princípio das Ordenações na Constituição de 1822 – ninguém deve ser preso sem culpa formada e sem mandado de autoridade legítima, salvo os casos de flagrante delito e para os indiciados da prática de crimes graves (furtos, roubos, assassínios, crimes contra a segurança do Estado, etc.).

Em todos os casos, o juiz, dentro de 24 horas, contados da entrada do arguido na prisão, devia mandar entregar-lhe uma nota por ele assinada em que declarasse o motivo da prisão e os nomes do acusado e das testemunhas, havendo-as. Se o réu prestasse fiança perante o juiz da causa, seria logo solto, salvo se for crime daqueles em que a lei proibisse a fiança, pois para ele prevalecida o regime de prisão preventiva.

Estes princípios foram depois reproduzidos no essencial na Carta Constitucional, na Constituição de 1838, na Constituição de 1911 e consagrados na legislação processual ordinária.

A regra era de que sem culpa formada a prisão preventiva era excepcional, nos caos já referidos, e que a prisão preventiva poderia ser substituída por fiança nos casos em que a lei admitisse e que eram em geral os crimes a julgar em processo correccional: os crimes mais graves, que seriam julgados em processo de querela não admitiam a fiança, e os crimes a julgar em processo de polícia correccional, não admitia a prisão.

  1. II. Medidas Coactivas no Código em vigor
  2. 1. Prisão

 

No Código vigente, a prisão é autorizada em flagrante delito, por crime a que corresponde a pena de prisão – cfr. n°. 1 do artigo 286° e artigo 287°. Todas as autoridades ou agentes de autoridade devem, e qualquer pessoa do povo, prender os infractores.

Admite-se ainda a prisão em flagrante delito, mas só pode ser efectuada por qualquer autoridade ou agente de autoridade, se ao facto punível não corresponder pena de prisão, quando não for conhecido o nome do infractor e a residência e não possa ser imediatamente determinado, ou quando se trata de arguidos em liberdade provisória ou condenados em liberdade condicional que tenham infringido as obrigações a que estão sujeitos -§ único do artigo 287° do CPP.

Os presos em flagrante delito devem ser entregues ao Poder Judicial em acto seguido à prisão ou no mais curto espaço de tempo possível, dadas as circunstâncias, salvo o disposto nas leis de polícia, sob pena de procedimento criminal contra os que infringirem esta regra – artigo 290° do CPP.

Quanto à prisão fora de flagrante delito, esta é admitida nos seguintes casos previstos no artigo 291° do CPP, quando se verifiquem cumulativamente os seguintes requisitos[3]:

  • Perpetração de crime doloso punível com pena de prisão superior a um ano;
  • Forte suspeita da prática do crime pelo arguido. Só há forte suspeita da prática da infracção quando se encontre comprovada a sua existência e se verifiquem indícios suficientes da sua imputação ao arguido, sendo sempre ilegal a captura destinada a obter esses indícios;
  • Insuficiência da liberdade provisória para a realização dos seus fins, e designadamente, quando haja comprovado receio de fuga, ou comprovado perigo de perturbação da instrução do processo mantendo-se o arguido em liberdade;
  • Quando o arguido em liberdade provisória, não cumpra as condições a que ela fora subordinada;
  • Quando, em razão da natureza e circunstância do crime, ou da personalidade do delinquente, haja receio fundado  de perturbação da ordem pública ou de continuação da actividade criminosa.

De uma maneira geral, a prisão preventiva fora de flagrante delito só pode ser autorizada, no decurso de um processo-crime instaurado contra o arguido e de cuja instrução preparatória resultem indícios suficientemente fortes da prática pelo mesmo do crime que lhe é imputado, e quando não se mostrarem suficientes outras medidas de coacção menos gravosas, para garantir os fins do processo, nomeadamente, a liberdade provisória mediante termo de identidade e residência ou caução, que adiante serão examinadas.

Este princípio tem orientado os sistemas penais de todos os Estados de direito democrático que erigem a liberdade do cidadão como direito fundamental e irrenunciável, no sentido de que a liberdade é a regra e só pode ser cerceada ou limitada nos casos excepcionais previstos na lei.

Mostra-se igualmente em perfeita consonância com a directriz relativa a privação da liberdade plasmada no artigo 57, segundo a qual a privação da liberdade apenas ocorre ou se mantém, quando outras medidas menos gravosas se revelarem insuficientes para os fins de prevenção geral e especial e de ressocialização do delinquente.

1.1. Prazos de prisão preventiva

Os presos fora de flagrante delito devem ser apresentados ao juiz da causa ou da instrução criminal dentro do prazo de quarenta e oito horas, ou de cinco dias quando se mostre absolutamente necessária maior dilação, nos termos do disposto no artigo 311° do CPP.

Este horizonte temporal inclui-se no cômputo da contagem dos prazos de prisão preventiva sem culpa formada fixados no artigo 308° do CPP, que são de 20, 40 e 90 dias, respectivamente, desde a captura até à notificação do arguido da acusação ou do pedido de instrução contraditória pelo Ministério Público, por crimes a que caiba pena correccional, pena maior ou crimes cuja instrução seja da competência exclusiva do SERNIC.

O Decreto-Lei n°. 35042, de 20 de Outubro, elenca no seu artigo 16 os crimes cuja instrução é da exclusiva competência da Polícia Judiciária: crimes de falsificação da moeda, notas de banco e títulos da dívida pública, tráfico de estupefaciente, de mulheres e de publicações obscenas. Podemos acrescentar agora o crime de rapto.

Pelo contrário, a Lei do SERNIC – Lei n°. 2/2017, de 09 de Janeiro – estabelece como competência específica do SERNIC a investigação dos crimes descriminados no artigo 7, que são na essência a maioria dos crimes previstos no Código Penal, o que induziria à conclusão de que o legislador pretendeu alargar os prazos de prisão preventiva e fixar o prazo de noventa dias para qualquer que seja o crime ou a sua natureza. Mas cremos que não foi e nem pode ser este o pensamento do legislador.

Por isso, propendemos a crer que há que fazer uma interpretação correctiva ao preceito. Na verdade é indiscutível que o órgão encarregue da instrução preparatória dos processos crimes é o SERNIC, sob direcção funcional do Ministério Público, e só em casos contados a instrução compete a outros órgãos, v.g. infracções fiscais e aduaneiras, infracções económicas, etc.

Assim sendo, parece-nos que o prazo mais dilatado de 90 dias é estabelecido quanto aos crimes de maior gravidade e complexidade, que exigem a realização de diligências especializadas e demoradas, que só o SERNIC, porque dotado de meios e capacidade para o efeito, pode realizar.

Quanto aos outros crimes, entendemos que se mantêm os prazos de 20 e 40 dias, respectivamente, consoante a moldura penal que em abstracta lhes cabe.

Todavia, e face as dúvidas  e perplexidades que a interpretação do artigo 7 da Lei  do SERNIC suscita quando confrontado com o n°. 3 do § 1°, somos de sugerir que a intervenção legislativa com vista a clarificar o sentido e alcance do citado preceito  em termos de fixar com rigor e precisão os crimes que pela sua natureza e complexidade reclamam um prazo de instrução mais alargado.

De facto, o problema que suscitava e suscita algum clamor sobretudo no seio dos órgãos ligados à investigação criminal prende-se com a exiguidade dos actuais prazos da prisão preventiva sem culpa formada para a realização de diligências instrutórias indispensáveis à decisão do Ministério Público de acusar ou abster-se de acusar o arguido.

O projecto do Código de Processo Penal submetido à aprovação do Parlamento já tomou posição sobre este aspecto no sentido de alargamento dos prazos de prisão preventiva, certamente pelas razões acima aduzidas, o que à partida poderá serenar e tranquilizar  os ânimos e deslocar o centro dos debates somente para a questão de delimitação rigorosa dos crimes cuja investigação compete exclusivamente ao SERNIC.

Da notificação do arguido da acusação ou pedido de abertura de instrução contraditória pelo Ministério Público até ao despacho de pronúncia em primeira instância, a lei no § 2° do citado artigo 308° do CPP fixa os prazos e três e quatro meses, respectivamente, se ao crime couber a pena a que corresponde processo polícia correccional ou processo querela.

Estes prazos podem ser prorrogados por mais dias, para decidir incidentes ou excepções processuais deduzidas pela defesa e para proceder às diligências de defesa que não pudessem ter sido realizadas antes, quando a própria defesa são desistir dessas diligências. É o que se estabelece no artigo 334° do CPP.

A partir desta fase processual (pronúncia) tem-se por formada a culpa, a qual se manteria nos termos do disposto no § 3° até à decisão final, isto é à proferição da sentença, mas este preceito legal foi julgado inconstitucional pelo Acórdão n° 04/CC/2013, de 13 de Setembro do Conselho Constitucional, com fundamento de que afronta o direito à liberdade com assento constitucional, manter o arguido detido por tempo indeterminado, desde que fosse pronunciado ou tivesse a culpa formada.

Aqui também, como nos restantes casos contemplados no artigo 308° do CPP, o legislador deve fixar o prazo desde a proferição do despacho da pronúncia até ao julgamento.

Concordamos em princípio com a posição do Conselho Constitucional, embora ao nível da Secção Criminal do Tribunal Supremo ganhe foros de cidadania o entendimento de que a omissão do prazo de prisão desde pronúncia até ao julgamento deve ser colmatada atentando na regra prescrita no § 2° do artigo 337° do CPP que impõe  ao Ministério Público a obrigatoriedade de informar ao Procurador-Geral da República sobre processos com réu que se encontrem presos há mais de um ano, seis meses e três meses, respectivamente, nos processos de querela, polícia correccional e nas demais formas de processo, o qual tomar ou proporá as providências que achar convenientes.

Consequentemente entende-se que os arguidos pronunciados nunca poderão permanecer sem julgamento para além dos referidos prazos.

Os prazos de instrução preparatória são improrrogáveis nos termos do preceituado no § 1° do artigo 337 do CPP, de sorte que findos esses prazos, a instrução pode continuar como contraditória, se for de manter a prisão do arguido.

De contrário, decorridos os prazos estabelecidos no artigo 308° do CPP, impõe-se atender à regra do artigo 309 do CPP que estabelece a obrigatoriedade de colocar o arguido em liberdade provisória mediante caução e sujeito às obrigações que lhe forem prescritas nos termos do disposto no § 2° do artigo 270 do CPP.

  1. 2. Liberdade Provisória

 

2.1. Liberdade provisória mediante termo de identidade

 

O arguido que se encontre fora dos casos previstos no artigo 286° do CPP, pode ser colocado em liberdade provisória mediante termo de identidade e residência e sujeito às obrigações estabelecidas no artigo 269° do CPP.

Desta medida de coacção pode o arguido beneficiar logo após o primeiro interrogatório ou findos os prazos fixados no artigo 308° do CPP.

A concessão da liberdade provisória mediante termo de identidade depende do prudente arbítrio do juiz, que decidirá tendo em conta o tipo e natureza da infracção, as condições económicas e  a personalidade do agente.

O juiz deve certificar-se de que o arguido uma vez colocado em liberdade mediante termo de identidade e residência, poderá apresentar-se aos ulteriores termos do processo quando para o efeito for solicitado pelo Tribunal.

2.2. Liberdade provisória mediante caução

Também serão colocados em liberdade provisória mediante caução os arguidos acusados de crime a que caiba pena por mais de seis meses ou pena a que corresponde processo polícia correccional ou de  querela, qualquer que seja a pena aplicável, bem como os vadios e equiparados e aqueles a que forem aplicáveis medidas de segurança privativa de liberdade – artigo 271 do CPP.

A acusação é fixada ao arguido logo após o primeiro interrogatório ou findos os prazos de prisão preventiva sem culpa formada a que alude o artigo 308° do CCP.

Recorde-se que foi declarada a inconstitucionalidade do § 2° do artigo 291 do CPP pelo Acórdão n°. 47/CC/2013, de 17 de Setembro, razão por que qualquer crime a que caiba pena maior simples ou pena fixa é sempre caucionável.

A caução pode ser carcerária, quando tem por fim assegurar eficazmente a comparência do arguido a todos os termos do processo e o cumprimento das obrigações impostas pela lei ou pelo juiz, ou económica, a destinada a garantir o pagamento das multas e imposto da justiça, bem como das indemnizações em que possa vir a ser condenado, desde que se lhe reconheça solvabilidade económica suficiente.

Em todo o caso, a caução nunca poderá ser fixa em montante manifestamente superior às capacidades económicas do arguido, ou com o fim deliberado de lhe impedir de a prestar, o que equivale a denegar-lhe o direito e manter a sua prisão ao arrepio dos pertinentes comandos legais.

Se o arguido por qualquer motivo estiver impossibilitado de prestar a caução ou tiver grandes dificuldades ou inconvenientes em prestá-la, poderá o juiz substituí-la pela obrigação de o arguido apresentar-se ao tribunal em dia e horas que designará, ou quando o juiz entenda necessário, obrigação que acrescerá às que lhe tiverem sido impostas.

Decorre da exposição sobre o instituto das medidas de coacção que, tal como está presentemente configurado na lei do processo penal, não suscita, em minha opinião e à primeira vista, qualquer controvérsia quanto à interpretação das disposições legais que a consagram.

Os problemas, a existir e acredito que existem, situam-se no plano da aplicação da lei e neste sentido é importante que com toda a abertura e franqueza identifiquemos as principais dificuldades e constrangimentos sentidas nesta sede, que explicam a ocorrência frequente de graves violações da lei, aos abusos de poder e de autoridade, que se traduzem em prisões fora do quadro legal que autoriza, ou são mantidas para além dos prazos de prisão preventiva sem culpa formada.

Tema 2: HABEAS CORPUS

  • Por Luís António Mondlane, Juiz Conselheiro do Tribunal Supremo4.2

 

[1] Vide, para todos efeitos, Germando Marques da Silva – Curso de Processo Penal – II. Faculdade de Direito, Verbo, pág. 316-318.

[2] Seguro  era a promessa judicial pela qual o arguido, sob certas condições, se aliviava da prisão até à conclusão da causa e era concedida quando o arguido negava o facto, ou confessando-o, invocava ter actuado em legítima defesa; a homenagem era a licença concedida, em razão da qualidade pessoal, para este estar solto em juízo, era privilégio concedido a nobreza.

[3] Não se incluem obviamente as disposições deste preceito legal declarados inconstitucionais pelo Acórdão n°. 04/CC/2013, de 17 de Setembro

 I – Antecedentes

Como ponto de partida, pretende-se dar conta, ainda que de modo sucinto, breve nota da origem e desenvolvimento do instituto de habeas corpus para, depois dedicar parte substancial ao conceito tal como hoje é entendido e, mais do que isso, positivado na Constituição e no Código de Processo Penal.

Apesar de algumas divergências que poderão ser encontradas aqui e ali, no que tange à origem deste instituto de relevo para a protecção dos direitos do cidadão é notório um ponto de intercepção no sentido de afirmar que as suas origens remontam ao direito romano, quer no sistema romano germânico (civil ou continental) quer mesmo no Roman Duch Law, com forte ascendência no direito anglo-saxónico.

Argumenta-se por um lado, que o habeas corpus deriva do instituto romano Interdicto de Libero Homine Exhibendo, que se aproxima muito do habeas corpus de tal sorte que alguns autores consideram-no como o natural antecedente do writ inglês. Em sede do direito romano, somente o homem livre, sujeito de direitos e liberdades podia impugnar a privação da sua liberdade através do aludido instituto, isto é “pleitear a restituição da sua liberdade[1]. O interdictum de libero homines exhibendo visava fundamentalmente restituir o direito de liberdade (ius libertatis) a qualquer homem livre privado arbitrariamente de tal direito por acção de terceiros ou impedido de usar a faculdade decorrente do ius libertatis. Apresentado o pedido, o Pretor não curava do dolo malo do captor ou detentor mas tão-somente a condição de liberdade de qualquer homem[2].

Pode-se, com segurança concluir e, à semelhança do instituto inglês que a figura do interdictum de libero homine exhibendo consistia na apresentação do homem livre retido perante o magistrado de modo a que a sua presença corporal pudesse ser constatada pelo magistrado e pelo público (exhibere, deixar fora de segredo), o que ensejava a oportunidade de o detido defender-se publicamente e perante o magistrado[3]. No mesmo diapasão, alinha Dugard, John quando se posiciona sobre a origem do habeas corpus[4].

Ainda no que se refere ao pré-constitucionalíssimo português há quem atribui a origem do habeas corpus às cartas de seguro, vigentes desde a segunda metade do século XIII até 1830. Entende-se por carta de seguro, o decreto em que o juiz competente concede, ao réu pronunciado para captura, a faculdade de comparecer em juízo, e, sob certas cláusulas, regressar solto do crime de que é acusado[5].

  1. 2. A Magna Carta e o Habeas Corpus

As opiniões dos estudiosos quanto à origem do habeas corpus dividem-se, perfilhando umas que este instituto deriva do Direito Romano e outras que apontam a Magna Carta de 1215, como adiante se verá. A similitude em termos de objectivo e os resultados pretendidos e alcançados, com maior ou menor extensão só acentuam a importância do instituto na defesa dos direitos do cidadão contra o abuso do poder, ou seja, quando privado de liberdade, um dos direitos fundamentais mais importantes, ao arrepio da lei. O desenvolvimento histórico do instituto, onde quer que seja no respeitante aos sistemas jurídicos contribuiu decisivamente para o seu apuramento e amadurecimento até aos nossos dias.

A Magna Carta (assim designada porque era a maior do que as demais assinadas na época) é uma espécie de carta de alforria assinada pelo rei e a favor dos barões dele desavindos. Há quem pretenda diminuir-lhe a importância dizendo que os barões amotinados estavam mais preocupados com os avolumados impostos cobrados pelo rei D. João (Sem Terra) para fazer face às despesas de guerras em que se envolvera. No entanto, a posição revisionista, inglória, não teve o condão de beliscar a importância histórica da Carta assinada no bosque de Runymede. A Carta, concebida como instrumento de defesa dos direitos e interesses dos barões e do clero foi, com o desenrolar do tempo e através de vários desafios, interpretação e aplicação pelos tribunais, tornando-se num documento popular que se transmutou na pedra angular da protecção dos direitos e liberdades do cidadão[6].

Rudyard Kipling (poema de 1922 “What Say the Reeds at Runymede”) sintetiza do seguinte modo a importância do feito:

“At Runnymede, at Runnymede,

Your rights were won at Runnymede

No freeman shall be fine or bound,

Or dispossessed of freehold ground,

Except by lawful judgment found

And passed upon him his peers.

Forget not, after all these years,

The Charter signed at Runnymede”.

Um dos grandes contributos da Magna Carta é sem dúvida o Estado de Direito, isto é a submissão do monarca e de qualquer outra autoridade à lei. O Rei João Sem Terra foi a Runnymede investido de poderes absolutos de prender ou mandar prender, fixar impostos sem consultar quem quer que fosse e saiu de lá despojado de parte deles com a imposição do princípio segundo o qual “não importa quão elevada seja a sua posição ou função porque acima dela está a lei” ou, simplesmente que ninguém está acima da lei. Não se fique com a ideia de que o Rei assinou de bom grado a Carta, a ameaça de guerra declarada pelos barões impeliu-o a isso. E, objectivamente, não poderia dar-se ao luxo de ter mais uma frente, agora interna. Já bem bastavam as guerras com a França.

Nas palavras de Justice Sandra Day O’ Connor, “o grande contributo dos sistemas jurídicos da Grã-Bretanha e dos Estados Unidos para a paz no mundo foi o princípio de que todos os Estados devem viver sob Estado de Direito[7]. Deve entender-se por Estado de Direito que as leis são adoptadas pelo órgão legislativo democraticamente eleito e aplicadas por tribunais independentes – um princípio fundamental para uma sociedade livre.

Afirma ainda a magistrada que a grande divisa do sistema de governo é o reconhecimento da existência de direitos individuais básicos aplicáveis mesmo contra o Estado.

Apesar das vicissitudes por que passou a Magna Carta contém disposições que inspiram na actualidade o constitucionalismo moderno. Rejeitada mais tarde pelo próprio signatário, foi depois anulada pelo Papa. Após a morte do rei, a Magna Carta foi repristinada e passou a ser uma espécie de constituição a ser observada por todos os monarcas, prestando, para o efeito juramento no momento da ascensão ao trono, no sentido de cumprir e fazer cumprir a Magna Carta. Uma das mais importantes disposições que se mantêm na sua versão original estão contidas no capítulo 29 (Nullus liber homo) que, por sua vez deram origem às cláusulas 29 e 30 da Carta de 1215, estabelecem o seguinte termos:

“No free man shall be taken or imprisoned, or disseised of any freehold, or of his liberties or free customs, or outlawed, or exiled, or in any way destroyed, nor shall we go upon him or put upon him, except by the lawful judgement of his peers (per legale judicium parium suorum) or (vel) by the law of the land (per legem terrae); to no one shall sell, to no one deny or delay, right or justice” [8].

Ao encontro da ideia do primado da lei, assinala João Chumbinho que tal conceito não é aquisição do constitucionalismo moderno. Já o artigo 29 da Magna Carta de 1215 estabelece o seguinte:

“Nenhum tributo será imposto no nosso reino a não ser por consenso comum do nosso reino” (artigo 12) e que “Nenhum homem livre será preso ou aprisionado ou expropriado ou banido ou exilado ou de outro modo atingido (...) a não ser com base num julgamento legal dos seus pares e segundo a lei do país” (artigo 39) [9]. A tradução deste preceito pode apresentar algumas variações mas todas elas se encaminham no sentido de melhor expressão do seu conteúdo. Valerá, por isso, dar nota do que salienta Gomes Canotilho quando disserta sobre o processo equitativo (due process of law), uma das grandes contribuições da Magna Carta. Refere a propósito que o due process of law tem como charneira as normas garantísticas da Magna Carta, designadamente o artigo 39 que dispõe:

Nenhum homem livre será detido ou sujeito à prisão, ou privado dos seus bens, ou colocado fora da lei, ou de qualquer modo molestado e nós não procederemos ou mandaremos proceder contra ele, senão mediante um julgamento regular pelos seus pares e de harmonia com a lei do país”[10]

No que respeita à função judicial, a Magna Carta fixou as bases fundamentais para o desenvolvimento de princípios que se podem agrupar em duas categorias, isto sem o prejuízo de sobreposição na sua enunciação:

  1. A separação de poderes;
  2. O nascimento do judiciário como um ramo separado do poder na constituição inglesa;
  3. A independência do judiciário;
  4. A incorruptibilidade (isenção e imparcialidade) do judiciário; 
  5. O desenvolvimento do common law baseado em doutrina de longa tradição mas representando, na realidade, o direito feito pelos juízes (jurisprudência).

Como corolário destes princípios, surge a segunda, igualmente importante, baseado no papel do indivíduo em relação ao Estado, compreendendo o seguinte enunciado:

  1. O judiciário como o último baluarte da liberdade individual contra actos arbitrários do Estado;
  2. O Estado de direito;
  3. A igualdade perante a lei;
  4. O processo equitativo (due process);
  5. A publicidade dos julgamentos e de actos judiciais relevantes, excluídos os de mero expediente;
  6. A fundamentação das decisões judiciais;
  7. A transparência na administração da justiça; 
  8. A previsibilidade, coerência e consistência das decisões judiciais. [11]
  1. 3. O desenvolvimento do habeas corpus em Portugal

A evolução do habeas corpus em Portugal anda associada à do Brasil, embora com traços que distanciam uma da outra. Em breve nota, importa assinalar que após a independência do Brasil, absorvendo o constitucionalismo americano, adoptou em 1891 a Constituição da República dos Estados Unidos do Brasil, cujo texto conferiu dignidade constitucional ao habeas corpus que já se achava previsto no Código de Processo Criminal de 1832.

Em Portugal, só a Constituição de 1911 é que viria a consagrar na lei fundamental a figura de habeas corpus mas, ainda assim, sujeita a regulamentação específica que só viria a ocorrer em 1945. O ambiente político não admitia tal iniciativa. Dispunha o preceito 31º da Constituição:

Dar-se-ha o habeas corpus sempre que o individuo soffrer ou se encontrar em iminente perigo de soffrer violência ou coacção, por ilegalidade, ou abuso de poder.

A garantia de habeas corpus só se suspende nos casos de estado de sitio por sedição, conspiração, rebelião ou invasão estrangeira.

Uma lei especial regulará a extensão d’esta garantia e o seu processo”. (O sublinhado é nosso).

Por sua vez, a Constituição de 1936 viria a renovar a esperança deste direito-garantia, ao abrigo do disposto no artigo 20º, § 4º nos seguintes termos:

“Fora dos casos indicados no parágrafo antecedente, a prisão em cadeia pública ou detenção em domicílio privado ou estabelecimento de alienados só poderá ser levada a efeito mediante ordem por escrito da autoridade competente, e não será mantida oferecendo o incriminado caução idónea ou termo de residência, quando a lei o consentir.

Poderá contra o abuso de poder usar-se da providência excepcional do Habeas Corpus, nas condições determinadas em lei especial”.  (O sublinhado é nosso).

Como se referiu, a regulamentação do habeas corpus só viria a ter lugar muito mais tarde, através do Decreto-Lei nº 35 043, de 20 de Outubro de 1945 cujas disposições se mantêm no actual Código de Processo Penal. Aquele diploma foi mandado aplicar ao ultramar, com alterações, pelo Decreto nº 36 198, de 28 de Março de 1947.

De relevo, lê-se no respectivo relatório, entre outros aspectos o seguinte:

“A liberdade que se desgarra da Ordem é crime; a autoridade que se desprende da Ordem é arbítrio. O primeiro desvio, porque individual, pode ser combatido com eficácia pela força do Estado. O segundo, porque praticado por quem detém a autoridade, só pela força do mesmo Estado, entregue a um órgão de jurisdição imparcial e independente, pode ser corrigido”.

O instituto de habeas corpus, tal como se conhece hoje, tem a sua origem no direito anglo-saxónico, com especial incidência no Habeas Corpus Act, de 27 de Maio de 1679, com as alterações que foram sendo introduzidas ao longo do tempo, mas que se mantém em vigor na actualidade. Consistia, na síntese de Germano Marques da Silva num mandado impeditivo dirigido à pessoa ou autoridade que tivesse detido um cidadão, privando-o da sua liberdade, ordenando-lhe que o apresentasse imediatamente à autoridade judicial. [12]

Tem-se apontado o escasso uso desta providência a uma alegada insuficiência de regulamentação. Entende-se, todavia, que as causas distanciam-se das referidas e se situam mais além. A fruição de tal direito que assiste os cidadãos quando ilegitimamente privados da sua liberdade, em consequência de abuso de poder ou de autoridade só pode ser efectivamente garantida quando em presença de um judiciário independente, forte, isento e imparcial e com as garantias constitucionais de tais princípios e direitos. Requer-se, antes de mais, um equilíbrio de poderes onde o judiciário desempenha as suas funções na qualidade de órgão soberano que administra a justiça em nome do povo.

A conclusão que se impõe é a de que o direito à dignidade da pessoa humana, associado ao da liberdade deve estar sempre presente na determinação da medida de coacção, maxime da privação da liberdade, observando-se os princípios da necessidade, proporcionalidade e adequação como também e, sobretudo, na decisão sobre a providência de habeas corpus. É igualmente referência padrão na interpretação e aplicação de direitos fundamentais que são de imediata aplicação. [13]

Assume-se, desta forma, esta providência como remedium juris para atalhar, com rapidez e eficácia uma situação de privação da liberdade actual e efectiva, decorrente de abuso de poder ou de autoridade. Tal acto pode ter por fonte a acção do magistrado (Judicial e do Ministério Público) de agentes de autoridade (órgãos auxiliares do M. P.) como também da própria lei.

A Constituição consagra o habeas corpus como direito fundamental, com a característica de direito-garantia da liberdade pessoal do cidadão e, por maioria de razão, estabelece um prazo de 8 (oito) dias para o seu conhecimento, a contar da data da entrada do pedido no tribunal competente.

Ainda no que respeita à sua natureza, assinala Germano Marques da Silva que não é um recurso mas antes uma providência autónoma, cautelar destinada a por fim em muito curto espaço de tempo, uma situação de ilegal privação da liberdade. 

“O habeas corpus não é um processo de reparação dos direitos individuais ofendidos, nem de repressão das infracções cometidas por quem exerce o poder público, pois que uma e outra são realizadas pelos meios civis e penais ordinários. É antes um remédio excepcional para proteger a liberdade individual nos casos em que não haja qualquer outro meio legal de fazer cessar a ofensa ilegítima dessa liberdade. Com a cessação da ilegalidade da ofensa fica realizado o fim próprio do habeas corpus”. [14]

O habeas corpus constitui no acervo dos direitos fundamentais um instrumento privilegiado da afirmação da dignidade da pessoa humana e da reparação do seu direito à liberdade quando ilegal e ilegitimamente violado. Por tal razão é um meio adequado a suster com rapidez e eficácia factos que consubstanciam abuso de poder ou de autoridade. [15]

É igualmente um factor de estabilidade democrática quando compele os poderes a conter os seus ímpetos e a pautar a sua acção pelo respeito pela dignidade da pessoa humana, do direito à liberdade e segurança do cidadão.

A combinação de factores tais como o activismo judiciário, a promoção e respeito dos direitos, liberdades e garantias fundamentais, aliados à densificação da cultura jurídica vai, certamente contribuir para a paz e tranquilidade social, felicidade e bem-estar do cidadão.

 

[1] Guilherme Camargo Massaú, A História do Habeas Corpus no Direito Brasileiro e Português, Revista Ágora n. 7, 2008. Pag. 1-33

[2] op cit. page 4

[3] Harold G. Rudolph (Senior Lecturer at the University of the Witwatersrand. This article has been abridged), Habeas Corpus; “The remedy of habeas corpus is derived from the Roman Dutch interdictum de homine libero exhibendo. The rationale behind the grant of the interdict is that because every man is presumed in our law to be innocent until proved guilty in an open court of law, any detention or deprivation of liberty of such person against his will is prima facie unjust and unlawful. As a result, the person who is detained should be released unless his jailor can justify his detention.”

[4] Dugard, John, 1978, Human rights and the South African legal order. Princeton, N. J. Princeton University Press. 1978:108 e seguintes.

[5] Pasqual José de Melo Freire, Institutionum Juris Criminalis Lusitani, 1794 “Per securitatis literas nos hic intelligimus judicis competentis, quo reo ad capturam pronuutiato conceditur, ut impune ad judicium venire, et solutus ab objecto crimine sub Curtis clausulis liberari”. In José Domingues, As origens do princípio de Habeas Corpus no Pré-Constitucionalíssimo Português; História Constitucional, n. 14, 2014 http://www.historiaconstitucional.com, paga. 239-352.

[6] John Philip Reid, in Magna Carta, Muse and Mentor, op. cit. Page 122

[7] Justice Sandra Day O’ Connor, Magna Carta and the Rule of Law, Magna Carta Muse &Mentor, Randy J. Holland, Thompson Reuters, Library of Congress; 2014:1 “The significance to our constitutional heritage of Magna Carta, the document signed by King John of England in 1215 limiting his own monarchical powers as a settlement with his own warring barons, is acknowledged in the Supreme Court building itself. On the two bronze doors (…) is a scene depicting King John sealing the Magna Carta (…)

[8] op cit idem Sir John Baker “The Legal Force and Effect of Magna Carta”

[9] Mcllwain, Constitutionalismo Anticuo e Moderno, Bolonha, 1947, paga. 119; In A Constituição e a Independência dos Tribunais, João Chumbinho, Quid Juris, 2009:84

[10] J. J. Gomes Canotilho, Direito Constitucional e Teoria da Constituição, 7a. Edição, 5ª Reimpressão, Livraria Almedina, 2003:492

[11] The Right Honourable Lady Justice Arden D. B. E. Magna Carta and the Judges – Why Magna Carta Matters, Magna Carta, Muse and Mentor, pag. 188

[12] Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal II, Edição Verbo, 2008: 357

[13] “The foundational status of human dignity means that it serves also as a background principle in the interpretation and development of other rights”. In Interpreting Constitutions, A comparative Study, Edited by Jeffrey Goldsworthy, Oxford University Press, 2006:303

[14] Relatório do Decreto-Lei nº 35 043, de 20 de Outubro de 1945.

[15] António Alfredo Medeiros, “Habeas Corpus e Cidadania”, Quid Juris, 2008:13.